por Ana Beatriz Ferraz
Uma em cada seis pessoas no mundo vive em solidão crônica, segundo a OMS. No Brasil, o desafio é reconstruir vínculos em meio ao desaparecimento dos encontros cotidianos.
A solidão não é novidade. Ela sempre esteve presente, atravessando idades, classes sociais e geografias. Mas foi a experiência do isolamento social vivido durante a pandemia de covid-19 que deu à solidão o nome que por muito tempo foi calado. Desde então, deixou de ser um incômodo silencioso e passou a ocupar espaço nos debates sobre saúde pública e bem-estar coletivo.
Segundo um estudo recente da Organização Mundial da Saúde (OMS), uma em cada seis pessoas no mundo sente-se solitária, um dado que acende alertas não apenas emocionais, mas sociais e fisiológicos. A solidão não é só tristeza ou falta de companhia. Ela pode afetar diretamente a saúde, gerando consequências como depressão, hipertensão, distúrbios do sono e até o comprometimento da imunidade.
Mas as consequências vão além do corpo. Como aponta a socióloga Claudia Neu, da Universidade de Göttingen, há uma correlação entre solidão persistente e o enfraquecimento da coesão social. “Não se trata de uma relação causal, não significa que uma pessoa solitária tenha maior probabilidade de se tornar radical, e nem todos os radicais são solitários, mas encontramos uma correlação estatística”, afirmou à DW.
A falta de encontros
Vivemos em sociedades cada vez mais digitais, rápidas e eficientes. No entanto, o que se perdeu nesse processo foram os pequenos encontros: a conversa no caixa da padaria, o “bom dia” no ponto de ônibus, o comentário sobre o tempo com um desconhecido no elevador.
Com o avanço do home office, das compras online e das redes sociais, muitos dos espaços de convivência cotidiana deixaram de existir. Para Claudia Neu, essa é uma transformação que exige reflexão: “Como criamos uma comunidade quando não nos encontramos mais em público?”.
É nesse ponto que entra o alerta da pesquisadora Inga Gertmann, da organização More in Common. Para ela, o que falta não é exatamente conexão com as pessoas que seguem próximas de familiares e amigos, inclusive digitalmente. Ela destaca que “O que está faltando, cada vez mais, é o encontro cotidiano, a interação casual com pessoas que também podem ser diferentes de nós”.
Gertmann lembra que até mesmo interações breves têm um impacto positivo, pois são formas de nos sentirmos parte de algo maior do que nossas bolhas digitais ou familiares. O risco da homogeneidade, lembra Neu, é o apagamento da diversidade de experiências. “Os casamentos tornam-se mais homogêneos, os bairros tornam-se mais homogêneos, as classes escolares tornam-se mais homogêneas”, diz. E o que se perde com isso é a capacidade de perceber as desigualdades e de construir pontes reais.
Segundo Neu, há um aprendizado importante que precisa ser retomado: a convivência com o outro. “Temos que aprender a aturar uns aos outros novamente”, afirma. E isso não se faz apenas com afinidades, mas com a disposição ao diálogo e ao desacordo respeitoso.
Espaços como praças, cafés, centros culturais e até estádios de futebol são mencionados como importantes pontos de encontro onde pessoas diferentes compartilham o mesmo ambiente — não necessariamente as mesmas ideias. “Eles não estão todos no mesmo canto, mas todos olham para o mesmo campo”, exemplifica Neu.
Gertmann também chama atenção para o risco de perdermos o costume do embate saudável. “Se desaprendermos sobre o embate, vamos desaprender a capacidade de mudança de perspectivas”, alerta. E isso compromete não apenas o diálogo, mas a própria ideia de sociedade.
Precisamos de espaços de convivência
Para enfrentar a solidão, tanto individual quanto coletiva, é preciso criar ou recriar espaços de convivência. Mas também é preciso buscar esses espaços. Neu sugere algo simples: “Ir a um café ou lanchonete em outro bairro da cidade”. A proposta é sair do círculo habitual e se permitir encontrar o inesperado.
A OMS (Organização Mundial de Saúde) assinala ainda que fatores sociais como pobreza, guerra e violência aumentam o risco de solidão. Por isso, o incentivo a políticas públicas de acolhimento, mobilidade e espaços compartilhados torna-se ainda mais necessário.
Estudos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apontam que a solidão na velhice não está necessariamente relacionada ao número de pessoas ao redor, mas à qualidade dos vínculos sociais. Em muitos casos, a perda do cônjuge, a distância de familiares, o luto e as barreiras físicas ou cognitivas dificultam a criação e a manutenção de relações significativas. Esses fatores, segundo os pesquisadores, elevam drasticamente o risco de depressão, ansiedade e declínio funcional.
Já a assistente social e pesquisadora Naira Dutra Lemos, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), afirma que a solidão deve ser considerada um dos “novos gigantes geriátricos”, ao lado da polifarmácia, da fragilidade e das quedas. “Ela precisa ser reconhecida como um fator de risco para hospitalizações e para a perda da autonomia entre pessoas idosas”, destaca.
Nesse contexto, especialistas em gerontologia defendem que o SUS (Sistema Único de Saúde) tem um papel essencial na detecção precoce da solidão, especialmente na Atenção Primária à Saúde (APS), por meio de acolhimento comunitário, escuta qualificada e articulação com políticas intersetoriais.
Enfim, mais do que um sentimento individual, a solidão é um fenômeno social e geracional, atravessado por questões de gênero, raça, mobilidade e acesso à cultura e ao afeto. “Todos somos parte da sociedade e, por isso, cada pequeno gesto de convivência conta”, lembra Claudia Neu. A reconstrução do comum começa quando voltamos a ver no outro alguém com quem é possível dividir não só uma conversa, mas o próprio mundo.
Referências
Lambeck, Petra. “Estilo de vida moderno alimenta a solidão no mundo”. DW Brasil, 21 jul. 2025. Disponível em:https://www.dw.com/pt-br/estilo-de-vida-moderno-alimenta-a-solid%C3%A3o-no-mundo/a-73330651. Acesso em: 23 jul. 2025
Brasil. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Pesquisa Nacional de Saúde 2019: percepção do estado de saúde, estilos de vida, doenças crônicas e saúde bucal. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: https://www.ibge.gov.br/estatisticas/sociais/saude/9160-pesquisa-nacional-de-saude.html. Acesso em: 23 jul. 2025.
Fiocruz; Ministério da Saúde; UFMG; USP. Estudo Longitudinal da Saúde dos Idosos Brasileiros – ELSI-Brasil. Revista Brasileira de Epidemiologia, São Paulo, v. 24, supl. 2, 2021. DOI: https://doi.org/10.1590/1980-549720210001.supl.2.3. Acesso em: 23 jul. 2025.
Neri, Anita Liberalesso; et al. Solidão e depressão na velhice: uma análise longitudinal. Revista Kairós Gerontologia, São Paulo, v. 24, n. 1, p. 7-25, 2021. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/podcast/reporter-sus/2023/08/01/solidao-aumenta-risco-de-depressao-na-terceira-idade. Acesso em: 23 jul. 2025.
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS). Conexões sociais e saúde: OMS declara solidão como ameaça global de saúde pública. Washington, D.C., 2023. Disponível em: https://www.paho.org/pt/noticias/21-6-2023-conexoes-sociais-e-saude-oms-declara-solidao-como-ameaca-global-de-saude-publica. Acesso em: 23 jul. 2025.
(*) Texto escrito sob orientação de Beltrina Côrte – Jornalista, CEO do Portal do Envelhecimento.
Artigo original: https://portaldoenvelhecimento.com.br/envelhecer-na-solidao-como-o-estilo-de-vida-moderno-desafia-a-conexao-humana/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_source_platform=mailpoet&utm_campaign=newsletterposttitle-2
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