por Carla Aguiar para Diário de Notícias (Notícias de Portugal)
Mais de 200 mil portugueses trabalham depois dos 65 anos. O engenheiro Jaime Braga continua no ativo aos 80 anos, a médica Nídia Zózimo mantém-se no hospital aos 70 e Constatino Sakellarides, depois de uma carreira intensa, dedica-se à Fundação para a Saúde aos 83 anos. Não pensam na idade e ultrapassam as doenças.
Ter dois empregos não é para todos. Ter três só serve a muito poucos. E se isso acontecer aos 80 anos, então podemos estar perante um caso de estudo. Mas essa é a história de vida de Jaime Braga,“bem nascido a 5 de outubro de 1943”, filho de um diretor de serviço “no tempo em que o cargo dava direito a vénia”, engenheiro mecânico e que, por acasos e méritos, é cumulativamente secretário-geral da Associação Portuguesa de Produtores de Biocombustíveis, assessor de direção da Confederação Empresarial Portuguesa e ainda coordenador técnico da Federação Nacional das Indústrias Oleaginosas. “Nunca pensei, é verdade, mas aos 80 anos tenho três folhas salariais”, diz, sem queixume ou exaltação, apenas com a naturalidade de quem se levanta de manhã para trabalhar como para respirar. Jaime é um caso raro de longevidade profissional e um dos mais de 209 mil portugueses que continuam no ativo após os 65 anos, sendo que 13% o fazem após a reforma, segundo o Instituto Nacional de Estatística.
O engenheiro já leva 13 anos de trabalho sobre a idade legal de aposentação, que aconteceu em 2011. Um episódio marcante ocorrido em 1995 terá ajudado a traçar-lhe o percurso invulgar. Era então diretor-geral da Empresa Nacional de Sabões, mas com o choque da adesão à União Europeia, a empresa entrou em agonia, teve de despedir mais de metade dos trabalhadores, e acabou por ficar desempregado aos 51 anos, com mais de 6 mil contos de salários em atraso nunca pagos . “Era muito dinheiro na época”, diz. “Deitei as mãos à cabeça, e agora? tenho uma família para sustentar, o que é que eu sei fazer?” Por sorte, não teve de esperar muito e o telefone tocou para o convidarem para “uma coisa novíssima em Portugal: coordenar a adaptação ambiental das empresas às regras da União Europeia, numa iniciativa governamental em articulação com a CIP. A ignorância dos empresários nesta matéria era total e foi um banho de educação popular”. Correu tão bem que, até hoje, as organizações que serviu na altura não prescindem dele. “Enquanto me quiserem estou aqui”. Mas também sente a missão de “tentar evitar que aconteça a outros o que me aconteceu quando fiquei desempregado e tive de despedir, custa-me aceitar que os facilitismos da administração pública, a insensibilidade e a incompetência de quem manda ponham em causa empresas e postos de trabalho”.
Por outro lado, o desemprego aos 51 anos marcou-o ao ponto de ter decidido “nunca mais pôr os ovos todos no mesmo cesto”. Mas isso obriga-o a uma certa ginástica, até porque os seus dias são bem preenchidos entre reuniões do conselho consultivo de entidades do setor energético, webinars, entrevistas a revistas ou artigos. “Raramente começo a trabalhar antes das 9h e acabo depois das 18h. Trabalho é depressa e sou organizado, não hesito muito para saber o que vou dizer ou escrever. Tenho 80 anos, os meus olhos têm 80 anos, as pernas talvez menos 20, limito-me a acordar todos os dias com a noção de que tenho de trabalhar, até porque ainda tenho responsabilidades familiares”.
Para quem começou aos 22 anos no projeto da primeira central termoelétrica do Carregado, se tornou professor no Instituto Superior Técnico e já leva quase 60 de atividade, dir-se-ia abençoado pela genética com uma saúde de ferro. “Nem por isso. Aos 73 anos uma pneumonia, em 2002 um grande AVC – depois de 29 anos sem uma baixa médica – e ainda um cancro no cólon que não me matou. Dois irmãos morreram com cancro e eu já me safei de duas. Como é que não hei-de estar grato?”. E medicação, toma? “Sim, tomo o chamado kit da terceira idade e funciona lindamente”, diz, com uma gargalhada, enquanto é chamado para mais uma reunião de direção.
“A vida é algo que acontece”
A última vez que Nídia Zózimo fez as contas tinha 45 anos, seis meses e 28 dias de trabalho dedicados à medicina. A poucos dias de completar 70 anos e de atingir a idade limite para o trabalho em funções públicas, a médica que ainda cumpre 35/40 horas semanais no Hospital de Santa Maria ainda não está preparada para abandonar a profissão e ir para o sofá ver televisão. “Se me fizerem a proposta de um contrato de 18 horas aceito, se for 40 horas nem pensar”.
A trabalhar em exclusividade para o Serviço Nacional de Saúde desde 2006, e “a dormir com o telemóvel sempre ligado à cabeceira”, depois de ter acumulado com o Hospital da Cruz Vermelha durante 20 anos, continua a gostar do que faz. “Não são os doentes que me chateiam, o que custa mais são as condições de trabalho e, muitas vezes, o ambiente. Felizmente tenho sorte e no meu serviço – unidade gastro – o ambiente é bom, se não fosse já me teria ido embora, porque isto é sobretudo um trabalho em equipa”, diz a profissional que fez urgências até aos 66 anos.
Enérgica e desconcertante, Nídia admite que “a medicina nunca foi uma paixão”. “Preferia a astrofísica, mas foi uma escolha de que nunca me arrependi”. Algum segredo para se manter numa atividade tão exigente à beira dos 70 anos? “Nunca pensei na idade, só tive uma crise de idade aos 30, depois nem tenho a noção do tempo”, diz a profissional que ainda arranjou tempo para o sindicalismo. Hoje, tem a noção de que, no envolvimento e na vertigem da urgência, a família acabou algo sacrificada. “Casei aos 20, sabe, e acho que sou agora melhor avó do que fui mãe para as minhas filhas”. Apesar do entusiasmo pela sua profissão, não a recomenda à descendência. “A minha neta mais velha foi a única em 13 netos a querer ir para Medicina. Foi um choque para mim. Imaginar que ela não vai ter tempo para a família e não vai ter natais. Agora já me habituei à ideia, mas foi um choque”.
“Nunca planeei nada, a vida acontece. Quando fui trabalhar para a unidade de transplante na Cruz Vermelha, por exemplo, não foi planeado. Mas confesso que ir lá fora e sermos vistos como os melhores do mundo é uma sensação ótima”. A vitalidade e vontade de continuar pressupõem uma saúde forte. Mas, tal como no caso de Jaime Braga, não é necessariamente assim. “Podia ter morrido aos 26 anos, estive internada 3 meses, tive várias cirurgias e complicações cirúrgicas e uma depressão pós-parto, em que cheguei a ter 30 e poucos quilos e, mais recentemente, foi-me diagnosticada uma tiroidite, que é algo que provoca muita fadiga”. Apesar de toda essa bagagem, “ainda me divirto a trabalhar, antes aprendia com os mais velhos, agora é com os colegas jovens e com os doentes”. E, admite, não liga muito à saúde, o que é, diz, “bastante frequente nos médicos, que se auto-medicam com ansiolíticos e antidepressivos para conseguirem às vezes enfrentar situações de trabalho muito duras”. Caso não receba uma proposta de contrato de trabalho a tempo reduzido, Nídia sabe que vai encontrar áreas de interesse.“Seja a astrofísica, as artes ou o sindicalismo, não planeio nada. A vida é algo que acontece”.
A vocação que veio de África
Moçambique é o marco mais importante na longa e estimulante carreira de Constantino Sakellarides. Não só foi lá que nasceu há 83 anos, neto de emigrantes gregos, como foi onde viveu a experiência mais desafiante enquanto médico rural na província da Beira, nos seus 20 e poucos anos, e que viria a influenciar o seu interesse pela saúde pública, área em que se tornou especialista, dirigente público e consultor internacional. Para além de diretor-geral de saúde e presidente da ARS de Lisboa, exerceu muito tempo como professor na Escola Nacional de Saúde Pública, da qual só se reformou no limite da idade, há mais de uma década. Atualmente, é membro do conselho geral da Fundação para a Saúde, que criou e à qual presidiu, para produzir conhecimento, análise e debate para o desenvolvimento do Serviço Nacional de Saúde.
“Quando me formei aos 23 anos não gostei muito da experiência hospitalar e inscrevi-me no quadro médico comum do Ultramar no final da década de 60, indo parar a uma região rural na província da Beira. Ali a prescrição é mínima, trabalhava-se com as mãos, estava sozinho no meio do mato onde fazia obsteterícia, cururgia e traumatologia e onde o principal desafio era fazer cesarianas sem os meios adequados, em situações muito difíceis onde as grávidas já me chegavam com com os bebés em sofrimento fetal”. Essa experiência, num meio com elevada mortalidade infantil, tuberculose e malária, traçou-lhe a vocação para a saúde pública. Foi convidado pela Universidade de Lourenço Marques, depois ganhou uma bolsa na Universidade de Houston, no Texas, onde acabaria por se doutorar em saúde pública. Quando voltou, já no pós 25 de Abril, organizou a gestão dos primeiros centros de saúde-piloto em áreas urbanas, “uma experiência muito interessante que suscistou, inclusivé, o interesse e visita de peritos da OMS”. O modelo de organização deu-lhe visibilidade e foi convidado para o implementar em Espanha. A seguir veio a passagem pela Organização Mundial de Saúde, durante oito anos, como diretor do departamento de política do serviço de saúde. E não mais deixou de viajar como especilista convidado para conferências internacionais, mesmo já depois de se ter reformado. “Um dia estava numa conferência, já não sei onde, olhei em volta e parecia o pai daquela gente toda, foi quando pensei que bastava, era hora de dar o lugar aos mais novos”. Constantino mantém atividade regular na fundação, que realiza conferências, como “os estados gerais do SNS”, e à qual dedica 4 horas por dia. O resto é dedicado à escrita – está a trabalhar no seu segundo livro enquanto recupera de uma cirurgia de remoção de um tumor no intestino –, ao lazer e à família. Adora estar com os netos, mas precisa do seu tempo e é muito claro a definir que “o meu tempo é o meu tempo”. “Não ter medo do futuro e fazer o que achamos que devemos fazer”, é o seu lema de vida. “Muita gente diz que quando se reformar vai ter tempo, pois eu digo: recusem esse tempo, preencham-no, porque a única coisa que nos resta é o tempo”.
Artigo original: https://www.dn.pt/4923915669/o-exemplo-de-jaime-nunca-pensei-mas-aos-80-anos-tenho-tres-empregos/amp/
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