A geração 68 voltou à luta na França. Elas e eles são os mesmos que há 55 anos inventaram a juventude como valor, mudaram o jeito de ser mulher e, agora envelhecidos, se organizam para criar uma nova maneira de viver para velhas e velhos. “Envelhecer é ser selvagem, raivosa, apaixonada, impertinente”, afirmam.
Esses adjetivos, raramente usados para qualificar a velhice, são agora reivindicados para repudiar o etarismo, preconceito que torna invisíveis os que têm mais de 65 anos e lhes confisca a palavra. Nos protestos de maio de 1968 eles diziam, aos berros, não acreditar em ninguém com mais de 30 anos; agora, aos 60, 70, 80 e 90, lutam para que os velhos tenham espaço e voz na sociedade.
No estilo tradicional dos movimentos da sociedade civil, criaram o Conselho Nacional autoproclamado dos Velhos (CNaV), ao qual já aderiram cerca de 2 mil pessoas, atuando em subgrupos por toda a França. São muitos os famosos a participar do coletivo: a escritora prêmio Nobel Annie Ernaux, a diretora do Théatre du Soleil, Ariane Mnouchkine, o sociólogo da École des Hautes Études en Sciences Sociales Michel Wieviorka, vários ex-ministros, além de jornalistas, cineastas e centenas de “seniors” anônimos e combativos.
Fundado em dezembro de 2021 num teatro parisiense, o CNaV evoca a impertinência e a radicalidade das suas aspirações. Nos dias 17 e 19 a associação vai realizar em Paris o Contrassalão de Velhas e Velhos, título que reafirma a contracultura da qual seus membros sempre fizeram parte e que pretendem recriar na velhice. Serão três dias de ateliês, workshops e palestras, num grande espaço no Marais, bairro dos “modernos” em Paris.
Está fora do debate o valor das aposentadorias e os sucessos da “economia prateada”. É em torno da vida afetiva e íntima, da desigualdade de gênero após os 65, do espaço dos velhos na sociedade e do direito de ser ator da própria vida que se estruturam as bandeiras de luta do coletivo.
Não dá mais para sair correndo da polícia como nos protestos de 1968, mas as hashtags atuais são inspiradas nas palavras de ordem daquela época: “Velhos de pé”; “Nenhuma decisão sobre os velhos sem a participação dos velhos”; “Envelhecer não é renunciar”; “Somos velhos mas não somos bem-comportados”.
Eles se chamam de “novos velhos”. É a primeira geração a ver seus pais chegarem aos 80 anos e muitos só morrerão aos 100 ou mais. Na França, 900 mil mulheres e homens tinham entre 90 e 99 anos no censo de 2022.
Ao longo dos últimos séculos, a humanidade ganhou 30 anos de vida, um terço a mais do que tiveram nossos avós. A longevidade colocou o envelhecimento no debate público, mudou o equilíbrio entre as gerações e deixou fora de foco a política de assistência social à velhice.
“Existe na França uma cultura que leva à desresponsabilização dos velhos, privando-os de seus direitos elementares”, escreveu num artigo Laure Adler, 71, jornalista, escritora e âncora de um programa de rádio durante 40 anos. Um dia depois de fazer 70 anos, foi demitida sob o pretexto de que velhos deveriam ficar em casa durante a pandemia.
Para Francis Carrier, 69 anos, a indignação maior vem da tentativa de calar os velhos LGBTQIA+, uma violência vivida nos asilos franceses. Engenheiro aposentado, ele estava nas ruas nos anos 70, nas manifestações em defesa do direito dos gays de viverem sem se esconder. Voltou à militância ao ser diagnosticado como soropositivo nos anos 80, lutando para romper o silêncio em torno da aids e, assim, todos juntos, recuperarem o orgulho e o amor próprio, mesmo se fragilizados. Agora depara de novo com a violência contra o direito à sexualidade dos velhos.
“Tentam nos dessexualizar para nos reduzir progressivamente a objetos de tratamento, que se resumem a comer, tomar remédios e dormir. Progressivamente, essa fase da vida vira a antessala da morte”, denuncia Carrier.
Ele tomou consciência dessas práticas ao trabalhar com a associação Petit Frères des Pauvres (pequenos irmãos dos pobres) e acompanhar várias mulheres bem idosas até a morte. Lá se surpreendeu com a inexistência de homens gays e mulheres lésbicas. Ao perguntar onde estavam as “minorias”, todos olharam assustados para ele.
“Não era nem homofobia, era um não pensamento”, observa Carrier. “Os velhos não têm nem identidade sexual, têm de voltar para o armário, não podem mais contar sua vida, com quem viveram, os prazeres que tiveram. Achei inaceitável e resolvi agir para não ser maltratado no futuro.”
Ele criou o Gray Power e foi um dos fundadores do CNaV. Para ele, os velhos héteros também não são bem-tratados, já que a necessidade de afeto e sexualidade é considerada imprópria para todos os gêneros. “Portanto, precisamos lutar para valorizar a velhice como o feminismo fez com as mulheres no passado. Trata-se de um problema social.”
A desigualdade de gênero, contra a qual mulheres do CNaV lutaram nos idos dos anos 70, continua na velhice. É mais difícil para as mulheres envelhecerem e elas são muito mais numerosas na nova frente de luta — sofrem muito cedo com o olhar negativo sobre os seus corpos submetidos desde sempre a padrões inalcançáveis de perfeição e juventude. Agora, juntam-se exigências de rapidez e conexão com as últimas conquistas tecnológicas.
“Os homens héteros preferem ignorar o tema porque mexe com tabus como a potência sexual. Acham-se belos e capazes de procriar até morrer. A velhice é uma questão essencialmente feminina”, ironiza Carrier.
Véronique Fournier, 69 anos, a única mulher entre os quatro fundadores do CNaV, vive isso em casa. Mora há 40 anos com um homem que teve muitas mulheres e filhos, um com ela e três com outras companheiras. Casaram-se há quatro meses e o marido não quer saber das discussões sobre velhice.
Cardiologista, aposentada faz três anos, ela há muito tempo trabalha com o prolongamento da vida ouvindo a palavra dos velhos. Fundou há 20 anos, no Hospital Cochin, em Paris, o primeiro centro de ética pública na França, um lugar aonde as pessoas podem ir quando uma decisão médica é tomada por considerações éticas. É um espaço de diálogo, uma interface entre a sociedade civil e a medicina, ao qual recorrem pessoas com desejo de abreviar sofrimentos de um filho ou dos pais.
Lá encontram sociólogos, juristas, médicos abertos à discussão. “É um momento tenso; as pessoas brigam entre si, uns querem continuar o tratamento, outros preferem parar”, explica Fournier. “Nesse espaço, os médicos compreendem e escutam quem pensa diferente deles, tentam entender se são eles ou não a tomar a decisão.”
Na França, a lei proíbe induzir pacientes à morte mesmo se esse for seu desejo. O debate sobre o tema opõe o governo — decidido a não usar o termo eutanásia na lei em preparação sobre o fim da vida — e a Assembleia Nacional, majoritariamente a favor. A tendência é aprovar o suicídio assistido, como já acontece na Bélgica e na Suíça. “Nós trabalhamos muito sobre como a medicina deve tratar os velhos. Devemos fazer uma cirurgia cardíaca para tentar salvar alguém que teve um grande infarto aos 90 anos?”, pergunta a fundadora do CNaV.
O coletivo dedicou duas jornadas a discutir o assunto, partindo da ideia de que não é possível dissociar o fim da vida da maneira como vivemos. A posição defendida pelo CNaV é liberdade total para os velhos decidirem sobre a própria morte, seja quanto ao momento de partir ou quanto à maneira de encerrar a vida. “Por quê? Por princípio é por ser um dos últimos direitos fundamentais que falta obter. Uma sociedade que permite os jovens a mudar de gênero pode continuar a proibir os cidadãos adultos a ter opinião sobre a morte?”, indaga uma newsletter enviada aos membros do coletivo. “Na França, quando você é velho, não pode tomar decisão sobre sua vida; botam você no asilo ou consideram que você é vulnerável e precisa de proteção. Nós dizemos não. Vamos inventar uma nova vida para velhas e velhos”, defende Fournier.
Não por acaso, durante a pandemia, explodiu o clamor contra os Ephads, a rede pública e privada de abrigos para pessoas idosas e dependentes. No quinto confinamento motivado pela covid, circulou um abaixo-assinado, com milhares de apoiadores, repudiando a proibição de visitar ou acompanhar os parentes internados nos Ephads, ressaltando que a atitude os tornava “suscetíveis de perder as referências existenciais e até a vontade de viver”.
Estavam todos sob o impacto de “O coveiro”, livro lançado pouco antes pelo jornalista Victor Castanet, com denúncias graves sobre a maior rede privada de asilos, a Orphea, proprietária de 200 estabelecimentos no país. Na vitrine do grupo, um asilo na beira do Sena, o cheiro de urina empesteava o ambiente, faltavam cuidadores e enfermeiros, a higiene era deficiente, os hóspedes só tinham direito a três fraldas por dia, independentemente do estado de saúde de cada um. A ideia era economizar para lucrar, embora o quarto mais barato custasse 6.500 por mês (em torno de R$ 32 mil) e as tarifas chegassem a 12 mil nas suítes (R$ 60 mil).
Pressionado, o governo tomou medidas de emergência e, não por acaso, muitas personalidades aderiram ao CNaV, escandalizadas com o tratamento dos velhos nos asilos. “Privilegiou-se a sobrevivência em detrimento do sentido da vida”, disse Michel Wieviorka ao jornal “Le Monde”. Com isso, ficou claro que era indispensável uma estrutura de representação das pessoas idosas diante dos poderes públicos para garantir os direitos dos 65+.
“Subscrevo a ideia de que as soluções devem vir da sociedade civil e que as pessoas de muita idade devem ser sujeitos e atores”, disse o professor, enfatizando que ele se engajou no movimento como “futuro velho’ que será.
Às vésperas da abertura do Contrassalão de Velhas e Velhos, o coletivo teve uma vitória a ser comemorada só pelos próximos. Depois de meses pedindo encontros a vários ministros sem receber resposta, o CNaV foi convidado para reflexão sobre “envelhecer na França”, lançado pela nova ministra encarregada dos velhos. “Ela marcou essa jornada no mesmo dia do nosso Contrassalão. Pode ser um ato falho, mas acho que sentiu nosso poder e tentou nos calar”, sugere Fournier.
Além disso, Fournier leva ao evento uma frustração: não conseguiu fazer nenhuma loja de brinquedos eróticos montar um estande no Contrassalão. “Não sei se foi preconceito, mas deve ser”, comenta Carrier.
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